domingo, 4 de outubro de 2020

A melodia de Zorah



– MAJESTADE! MAJESTADE! – Gritava o guarda enquanto corria pela estrada de pedra em direção à sala do trono. Esbaforido, o guarda parecia estar desesperadamente necessitando falar com o rei, ignorando todos os protocolos necessários para aquela situação.
Próximo do trono, ele cai de joelhos, lançando o seu capacete aos pés do rei: – Majestade! Majestade! – Buscando fôlego, ele repete.

Mas o que diabos está acontecendo? – Indaga o rei, seguido de uma ameaça: – Fale de uma vez pelo que veio ou mandarei lhe retirar a força.

O guarda ergue a cabeça, respira fundo e então diz: – A princesa sumiu!

Após pronunciar aquelas palavras, todos da sala real ficaram paralisados tentando processar as palavras do guarda. O rei, um pouco a cima do peso, cai sentado no trono, boquiaberto: – Como pode isso acontecer? A fortaleza dela estava protegida por quinhentos dos nossos melhores homens!

– Senhor! Não sabemos ainda, mas estamos investigando.

– Chamem todos os cavaleiros e campeões, precisamos resgatar a minha filha!

...

E assim, meus caros amigos, iniciou-se o dia no palácio de Zorah. Um dia que muitos esperavam que fosse um dia de vitória e de muitas festas, mas que acabou tendo uma reviravolta totalmente inesperada.
Para que vocês entendam o que está acontecendo é necessário voltar um pouco no tempo. Mas especificamente ao dia anterior. Onde uma sequencia de diversos acontecimentos se sucederam.
Zorah é uma cidade rodeada por montanhas, rochedos e perigosas e estreitas estradas difíceis de serem 
transpassadas. Uma cidade construida estrategicamente para que nós humanos pudéssemos ter uma visão clara dos céus  e dos dragões que vagam por eles.
Todo mês em Zorah, assim como em todas as outras grandes cidades de Aurix. Um grande concurso é realizado e o vencedor desse concurso tem a honra de se tornar um campeão do rei e de tocar o grande Rubi símbolo a cidade e de adquirir os poderes sobre o elemento ar.
Esse ano as coisas foram um pouco diferentes. A princesa Chun Huan estava já na idade de se casar e o rei Chen queria fazer isso o mais rápido possível. Mas não poderia ser com qualquer um, tinha que ser com um campeão digno.
E assim, o concurso desse mês teria como premio nada mais nada menos do que a mão da doce e bela princesa de Zorah. 
O tema escolhido pelo rei foi: Música. Que diferente de muitos dos outros reinos ao redor, é algo que é levado muito a sério em Zorah. Eles acreditam que um grande líder deve saber tocar o coração das pessoas não só com grandes e poéticos discursos mas também com adoráveis melodias.
Isso atraiu a atenção de praticamente todos os trovadores do reino. E homens dos quatro cantos de Aurix estavam então abarrotando os portões de Zorah.
Eu, príncipe Eric e meu bravo companheiro Jefenir fomos evidentemente convidados pelo próprio rei Chen em pessoa. Mas, claro, apenas como espectadores, até por que meu casamento com Lea estava nos melhores momentos possíveis. E Jefenir, bom, ele é o Jefenir. Não tem muito interesse em romances. Pelo menos era o que eu achava.

Bom, prosseguindo. Chegamos ao palacio real de Zorah um dia antes do concurso, depois de uma longa viagem pelas estreitas estradas nas montanhas. O que com toda a certeza chegou a desencorajar boa parte dos possíveis participantes. 
Fomos recebidos calorosamente pelo rei e seus soldados e hospedados nos melhores aposentos onde nós conseguimos descansar da longa viagem e apreciar uma bela vista da cidade de Zorah e de suas paisagens exóticas. Pouco depois, um mensageiro do rei bateu a nossa porta com um convite para um jantar junto com o rei. O que aceitamos de bom grado já que estávamos famintos.

Havia bastante comidas diferentes e exóticas durante o jantar. Muitas das coisas que não estávamos acostumados e muitas outras muito estranhas que não tivemos coragem de experimentar. Havia também vários outros convidados importantes junto a mesa. Como o rei Astorn e sua esposa e também o rei de Roklua da qual eu não me lembro o nome. Mas a jovem princesa acabou não estando presente alegando estar se sentindo mal, mas não acredito que seja o real motivo. 

O rei de Zorah passou um bom tempo olhando para Jefenir com curiosidade. Até que depois de algum tempo disse:
-Ouvi falar muito sobre suas aventuras principe Eric pelas cantigas dos trovadores. O quanto dessas histórias são realmente verdade?
Eu e meu amigo trocamos olhares antes de ele tentar explicar. 
-Desculpe Ó grande governante do pais do ar. Mas receio que não seja o principe Eric. -Era uma confusão recorrente que acontecia desde que éramos crianças. Jefenir estava sempre mais bem vestido e cuidava mais de sua aparência, enquanto eu não dava a minima para isso. Então as pessoas normalmente pensavam que ele fosse o herdeiro do trono.
-Eric sou eu. Ó hospitaleiro rei. E esse é meu bom e velho amigo companheiro de viagens Jefenir. -Expliquei.
O rei olhou para mim com um ar levemente decepcionado e disse.
-A sim. Desculpe pela confusão Ó jovem principe do pais do Metal.
-Sobre a sua pergunta Ó rei -Disse Jefenir -Apesar de parecer exagero de alguns trovadores, posso garantir que toda as histórias são verdadeiras. Eu estava lá e participei de todas.
-Interessante. -Disse o rei -Qualquer hora gostaria de ouvir um pouco mais. Mas por enquanto, por que não tocam algo para nós? 
-Estava só esperando você pedir. -Eu disse me levantando e pegando meu Alaúde que já deixei preparado numa das salas ao lado. Jefenir me seguiu silenciosa e educadamente e pegou seu velho violino e começou a afina-lo (apesar de já te-lo feito antes do jantar).
Foi uma noite divertida. Tocamos as melhores musicas de nosso repertório composto durante anos e anos de viagens. Melodias como "a cidade que tudo vê" que escrevemos para a pequena cidade de Linoá, "Uma bela montanha" que foi inspirada na grande montanha próximo a cidade Roklua, "cidade grande" inspirada na cidade Luz, "dias e dias de aventura" que Jefenir escreveu sobre os dias em que passamos com os guerreiros do Mar, e muitas e outras que tocávamos pelas cidades de todo o mundo. E terminei claro com a primeira de muitas músicas que escrevi para minha querida Lea. 
Todos estávamos nos divertindo tanto que nem víamos as horas passar. Faz tempo que não passávamos a noite a tocar assim. E isso nos trouxe ótimas lembranças.
-Bom, meus queridos amigos -Disse o rei se levantando -A noite foi boa mas acho que já está na hora de de irmos para as nossas camas. Até por que, o dia de amanhã será bem longo.
-Realmente -Disse Astorn -O tempo passa muito rápido enquanto nos divertimos.
Depois disso guardamos nossos instrumentos e todos fomos para os nossos quartos. Depois de claro, uma longa despedida. 
A noite passou rápido aquele dia. Não consegui dormir direito por causa da ansiedade. Fiquei remoendo o dia anterior, as pessoas rindo de nossas músicas, se divertindo e cantando juntos os refrões. Quem diria que esse bando de pessoas da realeza sabiam se divertir. E mais ansiedade ainda de pensar no dia seguinte. Nas diversas melodias novas, instrumentos diferentes e pessoas de todo o mundo que vão tocar aqui. Acabei passando a noite acordado conversando com Jefenir e relembrando histórias e dedilhando meu Alaúde, e quando demos por nós tinha um outro mensageiro batendo a nossa porta dizendo que já estava na hora de começar o grande evento.

...

O lugar estava cheio de pessoas do mundo todo. Alguns rostos conhecidos no meio deles, alguns amigos e alguns que não nos dávamos muito bem como um certo homem chamado Suriman que conhece-mos uma vez em Godres e quase nos matou "por acidente" em um desfiladeiro. Estava vestido com roupas vermelhas como maior parte dos participante (já que era uma cor muito usada pelo povo de Zorah e que dizem trazer sorte) e carregando seu velho Alaúde negro.  Nós carinhosamente o chamávamos de fuinha por causa de seu nariz grande e de sempre sumir do nada quando lhe convém.
Eu e Jefenir ficamos em uma parte reservada para os convidados de honra de onde poderíamos assistir as apresentações de um bom angulo e tínhamos alguns petiscos para comermos de vez em quando.
Ainda faltava uma hora para começar o evento de fato, então as pessoas simplesmente ficavam conversando e falando sobre os participantes ou outras coisas aleatórias. Eu acabei me distraindo conversando com alguns amigos que encontrei entre os participantes e Jefenir preferiu se afastar um pouco e apreciar a vista um pouco distante de onde as pessoas estavam conversando. Ele não era muito de se socializar. 
Depois de alguns minutos conversando e apreciando a boa comida me virei para ver o que meu amigo estava fazendo. Foi quando percebi que ele não estava sozinho, mas sim conversando com alguém. E não qualquer pessoa. Uma garota muito bonita por sinal. Com longos cabelos negros e um vestido vermelho de seda.
Me aproximei sorrateiramente e fiquei atras de uma coluna de onde eu poderia ver os dois melhor e ouvir um pouco da conversa. E não demorei muito para reconhecer que a garota com a qual meu amigo estava conversando era ninguém mais do que a princesa Chun Huan.
-Deve ter sido muito bom -Ouvi ela dizer -Toda essa vida de aventura, viajando de cidade em cidade e conhecendo tantas coisas novas .
-Foram realmente grandes dias e com certeza muitas aventuras -Jefenir respondeu. -Mas e você? Qual foi o lugar mais emocionante em que já esteve?
Ouve um momento de silêncio.
-Eu.. -começou a princesa timidamente -Na verdade nunca sai de Zorah. Nunca sai desse palacio, nem mesmo para a cidade próximo.
Mais um silencio constrangedor.
-Eu entendo. - Respondeu Jefenir.
E eu também entendia. A vida como membro da realeza era complicada. Cheia de regras e burocracias e nos raros momentos em que saiamos de nossas cidades era para alguma reunião com algum rei ou algum evento social sem graça. E para as princesas era mais difícil ainda, pois até para isso elas dificilmente saiam. Era uma vida monotona da qual minha irmã Elizabeth reclamava constantemente quando éramos crianças. E provavelmente por causa dessa vida que Jefenir e eu fugimos de casa a 7 anos atras para viajar pelo mundo.
-As pessoas dizem que a vista do palácio de Zorah é uma das mais belas do mundo -Disse a princesa -Mas quando essa vista é a única coisa que você vê durante toda a sua vida, você não vê mais grande coisa.
-Realmente. Zorah é uma cidade linda, e tem um belo castelo, e uma bela princesa se me permite dizer -Jefenir respondeu - Mas existem muitas coisas para se ver por ai a fora. Oceanos, florestas, cidades, castelos e criaturas incríveis diferentes de tudo o que você já viu. A vida é muito curta para ficar presa num lugar só.
-Queria que meu pai também pensasse assim -Disse a princesa tristemente -Pra ele eu sou só uma boneca frágil que ele pode deixar onde bem entender. 
-Tenho certeza de que não tem nada de frágil em você. Muito pelo contrario. Tenho certeza de que poderia fazer coisas incriáveis se tivesse a oportunidade. 
E os dois ficaram ali. Se olhando fixamente por alguns minutos, quase sem dizer nada. E eu ainda escondido roendo as unhas de ansiedade esperando o que iria acontecer. Quem diria heim Jefenir.
Até que de repente um grande gongo tocou e alguém gritou que estava na hora de começar as apresentações.
-Acho que tenho que ir agora -Disse a princesa meio sem jeito -Foi um prazer te conhecer principe Eric. Espero que possamos nos ver de novo algum dia.
-O prazer foi todo meu, Ó linda flor de Zorah.
E a princesa saiu com um semblante totalmente triste para junto de seu pai e sua mãe próximos ao trono.
Jefenir voltou a olhar a paisagem tristemente, suspirando e com olhar pensativo.
-E então... -Eu disse me aproximando.
-E então o que? - Ele perguntou sem tirar os olhos do horizonte.
-Como foi a conversa com a princesa?
Ele demorou um pouco para responder.
-Ela é uma princesa. Eu sou só um musico qualquer. Ela só falou comigo por que achou que eu fosse você.
-É. Pode até ser. -Disse eu olhando para o horizonte também -Ai ai. Quer saber? Tenho pena dela.
-Por que pena?
-Por que ao final desse dia ela provavelmente vai acabar se casando com o Fuinha e tals, ou qualquer um desses caras ai embaixo -Disse eu o provocando.
Jefenir me olhou com uma cara de assustado e depois um longo olhar para a princesa e para os músicos amontoados no saguão, como se só tivesse percebido o que esta acontecendo agora.
-Eu.. Eu ... -Ele gaguejou - Preciso do meu violino.
E saiu correndo para falar com o escriba real.

...

Jefenir se inscreveu de última hora no concurso com a permissão do rei. E acabou atraindo muitos olhares entre os participantes. Muitos já o conheciam a muito tempo e outros já ouviram falar sobre seu talento com o violino.
Acho que nunca vi meu amigo tão nervoso quando naquele dia. Mesmo depois de anos tocando para todo o tipo de público em tavernas, palcos, teatros, praças e até mesmo para reis e rainhas como na noite passada, ele nunca demonstrou nervosismo.
-Calma meu amigo -Tentei tranquiliza-lo -Não precisa se preocupar. Se ficar nervoso demais vai acabar estragando a apresentação. Não é o que sempre dizia pra mim?
-Tem razão -Ele disse tentando se acalmar -Não tenho motivos para estar assim. Vou me concentrar na música apenas, como sempre fizemos.
Ele tentou manter o olhar e aparência calma de sempre, mas eu conhecia bem essa sensação. O mesmo nervosismo incomodo que senti quando fui tocar pela primeira vez para minha amada Lea alguns anos atras.
As apresentações começaram bem animadas. E muitas coisas surpreendentes e musicas que nunca tinha ouvido antes foram tocadas por ali. Alguns músicos fizeram questão de compor melodias só para esse momento. E muitas letras sobre a beleza da princesa de Zorah foram ouvidas naquele dia.
Jefenir como foi o ultimo a se inscrever ficou com a ultima apresentação logo após o Fuinha. O que não ajudou nem um pouco com o nervosismo. 
Foram apresentações incríveis. Mas nada de muito inovador. E sem muito sentimento. Eu tinha certeza que Jefenir poderia tocar melhor que todos eles até o momento.
Chegou enfim a vez do nosso amigo Fuinha tocar. E ele acabou nos surpreendendo. Com seu alaúde negro ele tocou uma nova música autoral com uma poesia incrível que acabou lhe rendendo muitos aplausos. Apesar de não gostarmos muito dele, tínhamos que admitir que tocava ele bem.
E como eu já esperava, ele com certeza seria o vencedor da noite se Jefenir não tivesse resolvido se inscrever.
Eu confiava no meu amigo. Sabia que ele poderia superar essa melodia. Mas também sabia que não seria fácil. E também não queria ver uma garota linda como a princesa se casando com um cara como o Fuinha.
-Eu queria ter preparado alguma coisa para esse momento. -Disse Jefenir -Não faço ideia do que tocar.
-Sei que vai pensar em alguma coisa -Eu disse esperançoso. Mas no fundo também estava nervoso -Boa sorte, é a sua vez.
E morrendo de medo como nunca antes ele caminhou sobre o longo tapete do saguão real e ficou diante do rei fazendo uma leve reverencia. 
A princesa estava vermelha e confusa. E ficou mais confusa ainda quando o mensageiro anunciou o nome do participante e ela percebeu que não era o principe Eric com quem ela conversara mais cedo.
Jefenir olhou rapidamente para a princesa com um sorriso e começou a tocar o violino. Uma música que começou lenta e suave. A primeira vista pensei que fosse "estrela de Zorah" uma de nossas músicas que tocamos muitas vezes no passado. Mas foi mudando, gradativamente. Eu não conhecia essa variação. Era diferente, suave, alegre e... apaixonante. Como eu nunca vi ele tocando. Será que ele tinha escrito isso antes em algum momento ou será que estava simplesmente improvisando? 
Enquanto a música foi surgindo pude ver o olhar de curiosidade nos olhos de toda a plateia. E um olhar de paixão ardente nos olhos de Chun Huan que não desgrudou os olhos dele nem por um segundo.
E quando terminou. Um longo silencio se seguiu. Até que finalmente alguém entre a realeza puxou palmas, provavelmente Astorn ou sua esposa.
E depois de muito tempo os juizes finalmente decidiram o vencedor. E claro, não tivemos duvida de que Jefenir foi esse vencedor.
Com o segundo lugar para nosso amigo Fuinha, mas ninguém liga para isso.
Eu não podia estar mais feliz pelo meu amigo nessa hora. Nem eu e nem a princesa que não parou de sorrir pelo resto da noite.
Uma grande festa foi feita naquele dia. Teve um grande banquete da qual participaram todos os músicos do dia (com exceção do Fuinha que voltou pra casa bufando de raiva logo após o concurso).
E como o rei não gosta nenhum um pouco de perder tempo, marcou o casamento para o dia seguinte.
Mas claro, esse casamento nunca ocorreu.
Por que na noite daquele dia, enquanto todos no palacio dormiam. Jefenir e sua princesa haviam escapado do palacio escondidos, montados em um cavalo branco rumo a novas aventuras.

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